Som que preenche
Aqui em casa, na Serra, entra muito sol e estímulos sonoros.Gosto muito de sol e casa clara, livre de bolor. Mas vou falar agora de sons.Depois que mudei pra cá, percebi que o saxofone é um instrumento eloqüente. Diferente. Infiro que quase todos de sopro o são. Por que?Soprar é misturar-se ao ar. Talvez aí resida a distinção. O violão ou piano é tocado com as mãos. O toque produz um resultado que não se fusiona ao ar. O seu som permeia o ar. É levado.O som do saxofone se homogeneíza com o ar, daí sua pungência. (Discordo de Cruz e Souza quando nos fala: "Como me embala toda essa pungência, / Essas lacerações como me embalam, / Como abrem asas brancas de clemência / As harmonias dos violões que falam!" Acho que pungente mesmo é o saxofone).O som dos carros nas ruas é passível de camuflagem. Torna-se parte de. O som do sax simplesmente instala-se. Apresenta-se. Faz-se notável. Quando assisto a shows musicais, minha atenção é roubada por este instrumento. Às vezes, ocorre até uma disfarçada irritação. Costumo concentrar-me no som da bateria, pois meu marido é baterista. Mas meu ouvido não consegue ser seletivo. Não dá para não ouvir o sax.Estas observações só me são possíveis graças ao nosso vizinho Cléber Alves. (Não o conheço, apenas o seu sax). Saxofonistas dos bons. Dedicado e estudioso. Eu realmente sei o quanto ele estuda.Quando o sol despenca, é bom ouvir uma música completa. Com início e fim. Mas o estudo pertinaz torna para o vizinho, a eloqüência exagerada. Mas não se compara ao cachorro pequeno do prédio do Cléber Alves. Será dele? Estou certa que não. É redundante para alguém que toca saxofone ter um cachorro pequeno que late. Um parêntese para o cão: Absolutamente mais que o sax, o latido ocupa e enche... O sax oferece momentos agradabilíssimos. O cão aproxima-se do sax nas aulas ministradas pelo Cléber aos sábados cedo. Fico aqui torcendo para que os alunos acertem as escalas e notas como fico desejando que o cão cale.Quando, numa noite ouvi, vindo do bar da esquina, um outro som de sax, logo falei ao meu marido: esse aí não é o Cleber Alves. É ruim. Saxofone ruim também ocupa e enche. Preenche de tal forma que não sobra espaço para pensamento.A minha conclusão sobre saxofones: Deve fundir-se ao ar, ao pensamento e à claridade do cair da tarde.Escrevi este conto porque meu marido encontrou o Cléber no Olímpico e disse a ele que eu iria escrever um conto sobre seu sax. Ei-lo.
Janaina Caldeira P. Godoy 14-01-05
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